CONTO – ELLA A SEREIA EM PARIS – A REVELAÇÃO

fundo-003

Linda…

Ella surgiu à minha frente num café na Champs Elysées. Assim como outras vezes me fitava com mistério sapeca e tinha a mão direita elegantemente segurando o queixo com o detalhe do dedo mindinho encostando suavemente no lábio superior.

Não sei falar sobre o inexplicável da presença d´Ella.

A mulher n´Ella é belíssima. Cabeça arredondada, rosto expressivo, inteligente com um quê de força. Cabelos longos e vastos que desciam como duas torrentes pelo peito e se espalhavam naturalmente estonteante ocultando os seios… Não tanto. A cor dos cabelos d´Ella é notável. A coloração do mel claro brilhando mesmo sem sol! São quentes com o sol… Eles se movem, dançam produzem um movimento de vida como se dançando com os movimentos dela. Eles têm uma centelha de vida própria dada pela beleza de cada fio e o conjunto deles.

Os olhos dela estão além da descrição por um mortal… Grandes, um esverdeado claro que fica mais claro num degradê vivo à proximidade da córnea… Olhos que com a luz mudam para um azul esverdeado. Cor do mistério. Cor d´Ella

Seus ombros estreitos e proporcionais exuberavam que o artífice que os esculpira havia torneado os braços com esmero. Lindos, longos, Suas mãos eram eram finas, longas e se movimentavam como se todos os gestos fossem frutos de um espírito superior. Espanto vinha com ventre da sereia… Esbelta, com uma camadinha de gordura finíssima que embelezava os músculos abdominais deixando-os mostrarem-se em seu dinamismo.

Logo abaixo do ventre começa a bonita curva da cintura e a natureza peixe! Escamas cobrindo músculos poderosos. Nesse ponto a paixão que queria vir se transforma num respeito enfeitado de medo instintivo; doses de bom senso aparecem diretamente proporcionais ao encanto dElla. Ela é bonita e harmoniosa como mulher e também a parte peixe. A curva dos quadris maior um pouco que a distancia dos ombros. Movimentos harmoniosos! Há uma diferença fundamental entre cada ser humano vivo; mas, entre ela e eu há ainda o fator Homo sapiens pós-moderno e uma sereia que vive no mar há muitos séculos, e, (agora eu estava consciente) decidira criar um vínculo comigo. Naquele momento eu sabia que ela sabia o que eu estava pensando…

– Terminou? – Perguntou ela com um sorriso.

– Penso muito?

– Sim. E muito mais do que poderia substanciar em atos. Mas não foi isso que perguntei. Terminou o seu café?

– Hum-hum.

– Então vamos!

Não perguntei para onde. Paguei a conta e saímos. Nevava. Ella apenas vestia os seus cabelos e eu me divertia notando que ninguém a via. Parei de falar para evitar ser tomado por maluco. Fomos à Charles de Gaulle Étoile e na plataforma ela tocou o meu braço e quando vi estávamos nos trilhos… Caminhávamos por eles! A dose de sustos e surpresas com Ella ainda estava longe de findar. É impossível se acostumar. Continuamos e logo que nos afastamos da estação a luz mudou e vi que os trilhos desapareceram e continuamos caminhando num túnel onde as paredes tinham luz própria. O espaço alargou. Andávamos sem esforço e a leve contração no meu estômago prenunciava mais um capítulo do incomum que matizava a amizade com ela.

O espanto exacerbou-se quando entramos num imenso espaço enfeitado com pedras, paredes, sendas e cores… Um pequeno universo das mais impressionantes rochas que já vi. Caminhos levavam por entre elas numa dança das cores.  Andei muito. Ella sumira. Sabia que a sereia estava em controle da situação e por isso dei larga ao meu espírito de aventura até que cheguei a um lago onde perdi o fôlego… Eu sabia que ele era muito, muito fundo e, talvez por isso algo mais fundo em mim reagiu. De tudo que já passei com Ella, aquele lago foi o mais assustador. Nada de mal nele… Um mistério, um susto. Era como olhar numa dimensão insuspeitada ou desconhecida. Era uma Porta…

A TURMA

A sala aberta em meio a uma clareira e parei. Havia bancos de pedra num círculo, sentei-me num deles, o menor. Alguém ou uma criatura por ali. Logo a vi! O maravilhamento. Uma pantera negra. Comecei a vê-la pelos olhos que brilhavam e me olhavam. Olhos amarelos escuros com íris negras como ela.  Imensa. Um negro absoluto que reverberava em azul no refletir a luz e num total relaxamento de músculos; mas eu sabia que numa fração de segundos estaria em ação em toda a força. Mesmo frente ao estado de beleza do animal pensei que numa outra viagem com Ella eu deveria ter uma arma… Mas imediatamente me conscientizei que nenhuma arma no mundo ajudaria num confronto com ela!

-Oi. Como foi a viagem até aqui?- Perguntou ela. Tinha uma voz agradável e profunda.

-Muito boa com surpresas para todos os lados!

-Vocês são muito frágeis… – disse a pantera numa conclusão… – talvez por isso pensem tanto em guerras e armas. Por que eu iria atacá-lo? A fragilidade em criaturas imaturas como vocês cria uma distorção onde a força entra como um meio de fuga. – filosofou ela.

Continuou me perscrutando sem nenhum sentimento de crítica…

-Como Ella disse, aprende-se com os humanos. Verdade. O forte de vocês não é a força física… Vocês têm um valor espiritual, eu diria… Mas não usado ou até falido.

-Você nos entende muito bem! O seu forte é a força física? Não parece.

-Não. Ela só existe e não preciso provar nada. Só usá-la se necessário. A necessidade é o fator que comanda um ato.

Conversamos. A pantera se levantou e espreguiçou sistematicamente todos os músculos numa elegante cerimônia e sentou-se como um grande gato.

Naquele momento percebi mais gente por ali.

Deixei de me surpreender. Um urso enorme e inteligente, uma águia, um centauro, (que, creio, não gostou muito de mim) um leão imenso e muito bonito e algumas outras criaturas que eu não via e só sabia que estavam em determinados lugares no espaço. Em pé com uma indizível cara de malandro estava um fauno.

E o impressionante. Um homem mais baixo, muito forte, atarracado. Usava barba e cabelos compridos. Mas o incrível é que tinha um crânio bem menor que o nosso. A testa pequena e a face muito desenvolvida! Eu sabia que ele tinha nos maxilares um quarto molar! Olhava-me com um misto de piedade; a surpresa num pano de fundo de decepção. Creio que pensava: “o que é isso? Como involuímos, gente… Fomos terminar nisso!”. Ele estava com muita dó de mim.

Vi que estávamos em pleno encontro informal e sério. Respondi e fiz perguntas. A conversa engrenou e contei como éramos e as nossas guerras, desgovernos, medos e corrupção com seus partidos políticos. Falei sobre os acidentes, cheias, tempestades e destruição bem como o número imenso de seres humanos vivos e consumindo a Terra. Ouviam com grande atenção. E para ser justo falei também sobre a beleza do ser humano e o desejo por felicidade e um sentido mais definido para a vida.

Assim estávamos envolvidos até que o casal chegou e por um momento percebi uma leve mudança em todos! Eram impressionantes. Altos, em torno de uns dois metros e pouco. A mulher uma beleza notável com olhos de um brilho assustador e marcante. A mulher não me dirigiu a palavra em momento algum, mas me observava atentamente.  Ele parecia ser muito forte e acostumado a duros combates e ambos respeitados por todos ali na clareira. Eram tratados com deferência notável e espontânea. Continuamos a conversa até que ele falou dirigindo-se a mim.

– Bem-vindo ao nosso grupo! – Ficou mais um tempo me observando – Uma surpresa agradável e importante. – Olhou para um pouco mais à direita e atrás de mim. – Obrigado, Ella.

– Vou ganhar um diploma? – Perguntei.

– Não. Mas se viver vai ser tudo “muito divertido” como você costuma dizer – falou a sereia.

Todos estavam ligadões.  Decidi parar com brincadeiras e me concentrar na conversa que era o motivo pelo qual estávamos ali. Em algum lugar da minha mente senti Ella me falando: “Isso, ouça com atenção. Está indo bem. Pare de gracinhas!”.

– Somos amigos – disse o guerreiro fazendo um gesto que envolvia o grupo – mesmo que sejamos muito diferentes em formas e naturezas. Temos um objetivo em comum o que nos aproxima mais.

– E você humano poderia, se decidir…, acrescentar um fator importante ao nosso esforço como uma turma. – Disse a imensa águia me olhando muito fundo, mais do que eu mesmo estava consciente.

– Por favor – falei – Expliquem como eu poderia ser útil no meio de criaturas tão… impressionantes e muito melhores do que eu.

– Mais fortes, sim – falou o centauro – e muito… Mas não melhores!- Ele era simpático, alegre e com um jeito zombeteiro sem ofensas e tinha olhos limpos que inspiravam confiança.

NOTÍCIAS & SURPRESAS

Ella foi para frente, ao lado da pantera e começou a contar coisas que nunca mais sairão da minha mente. O guerreiro sentou-se num banco de pedra e continuou a prestar toda a atenção em tudo. A maravilhosa mulher dele, mais atrás como uma estátua deslumbrante mantinha-se imóvel e me olhando. E Ella continuou a pintar com palavras um quadro impressivo.

– Duas coisas vão acontecer em breve. Uma é inevitável, nobre e boa. A outra precisaremos evitar e no esforço de obstá-la você entra. Evitar a segunda é o nosso negócio, entendeu?

– Vamos começar pela boa?

Ella riu.

– Sim. A boa é um inexorável julgamento dos homens pela força criadora. Vocês já passaram do limite e a destruição da terra, a violação de princípios, a corrupção e o mal puseram em marcha um sistema-resposta que vem e está próximo.

– Que bom que você está otimista hoje! – Adivinhei um “pare” na fímbria da expressão da sereia e ela continuou:

– Como eu disse isso é nobre uma vez que vai separar o Bem e o Mal de um modo decisivo. Impossível ser evitado. Tudo aponta para esse momento no tempo e o próprio tempo amadureceu! Mas não sabemos quando e quanto tempo até a Ira.

– E queremos fazer alguns planos – falou o centauro de olhos simpáticos e alegres.

– Puxa! Bem, que tal agora a má noticia!

– Ela se refere ao fato que há seres malignos que estão avançados no trabalho de destruir a terra, assassinar os homens… como se tudo fosse o processo de julgamento pelo alto! Não é. A nossa missão é parar esse horror.

– Já fizemos isso de tentar “resolver” o desastre óbvio em algumas das nossas grandes guerras… E fomos nós mesmos que criamos todos, o horror e as guerras!

– Concordo – disse Ella – mas, veja que a humanidade como um todo não morreu e em meio aos combatentes houve coragem, idealismo, companheirismo. Houve engano, sim; houve bravura também. Mas, nos referimos aqui a um morticínio indiscriminado de bilhões de pessoas… sem glória, sem coragem… sem sentido.

Um silêncio impressionante veio como um vento pesado e ficou em nós até que um dos personagens que estivera sempre em silêncio e um pouco mais atrás dos outros falou caminhando até o meio do círculo. Tinha a minha altura usava uma vestimenta negra que findava num capuz igualmente negro. Um rosto sério, bem definido e claro.

– E eu – disse ele, de um jeito brincalhão – não vou estar envolvido nesse crime imenso.  E veja que o fim de cada um de vocês… é a minha função! Eu encerro o tempo de vocês aqui, mas no momento certo… Sou Tânatos. Obrigado, garoto! Você foi muito gentil comigo nas suas observações no seu diário de viagem ao Egito.

Fiquei quieto e uma sensação indescritível correu pelo meu corpo.

DESABAFOS ILUSTRES

Tânatos continuou.

– Ele tem razão nunca fui entendido antes – falou para os amigos e depois se voltou para mim – como por você, bicho. Emocionou-me, sabia! – Voltou-se para os amigos de novo. – O Mario entendeu que eu andava triste; afinal depois de milhares de anos cumprindo minha função de findar a vida de pobres, ricos, bandidos, santos, poderosos. De comunicar ao mundo que nada pode ser feito com relação ao dia da saída do mais poderoso ou do muito pobre… e assim findar impérios e sofrimentos pessoais, eu fui discriminado, temido, incompreendido… e o pior: detestado! Constantemente ofendido por eras e eras. Gente… Nunca gostaram de mim… Doeu por séculos! Desculpem e desabafo… Verdade! – voltou-se para mim de novo – Obrigado, cara…

E o pior – disse ele caminhando teatralmente entre os amigos– muito pior e chocante. Com a moderna medicina e o horror a mim uma fonte de renda considerável surgiu. – voltou-se para mim. O me evitar via retalhamento e a administração de uma quantidade de drogas que se misturam com a alma do homem. Vocês sempre tentaram manter a saúde e a vida. Mas havia certo bom senso. Hoje há loucura, técnica e dinheiro. Sabe cara que milhões de pessoas que eu “colho” – e ele foi carinhoso com o termo – tem seus espíritos tão mudados que não servem mais para a continuidade na Grande Caminhada! Viram “Coisas” eternas. Um horror.

Ele sorriu – Houve só um errinho, coisa pouca, sabe. – Parou na minha frente, a uns dois metros, puxou o capuz para trás exibindo uma cabeça bem proporcionada, cabelos longos e brancos emoldurando um rosto até bonito. Apenas seus olhos pareciam um espaço, um vazio que olhava e via. Mas nada agressivo. Agradável. Creio que os olhos de Tânatos mostravam a Eternidade através dele. Tânatos me pareceu uma ponte. Ele sorriu e disse:

– Eu sou do gênero masculino! Eu sou “O”.

– Que engano o meu, cara… Desculpe. Veja que coisa. Essa não… Afinal desde criança aprendi que a morte era mulher, usava uma veste negra; feia de doer e tinha uma foice na mão e tudo enfeiado, mais ainda, com um inexistente sorriso de caveira. E, até, sempre pensei que sendo um crânio sem um sistema termo regulador porque o capuz e…

O fauno, rindo, disse a Ella.

– Ella, considerando suas observações sobre o seu amigo, vejo que agora temos dois engraçadinhos: Mario e Tânatos. Que coisa! Ninguém merece.

– É, verdade. – falou a sereia no meio de um suspiro fundo. Acharam-se!  – Vamos voltar ao foco do motivo pelo qual estamos aqui. Temos uma pergunta e uma proposta. Vamos à pergunta.

Enquanto Tânatos sentava-se num dos bancos de pedra, Ella continuou. Todos estavam à vontade e ligadões.

A ESTÁTUA E OS CÉUS

Comecei com toda a calma.

– No modo de vocês perceberem o tempo, há milhares de anos surgiu em todos os céus que conhecemos uma imagem fantástica. Imensa. Uma estátua de um guerreiro da terra. Muitos não souberam o que era. Não conheciam a terra nem os seus habitantes ou as suas guerras. Era uma nebulosa e representava um guerreiro humano com a cabeça de ouro puro. Aparência era terrível e inspirava medo mesmo nas criaturas que não conheciam o medo. O peito e os braços de prata e o ventre e os quadris de bronze. As pernas eram de ferro. Mas os pés chamaram a atenção. Parte de ferro e parte de uma matéria mole. Para quem conhecia a terra e de como ela era feita, era barro. Há uns seis mil anos, como parte da visão apareceu ao lado da estátua, uma montanha. Uma rocha foi cortada, separada sem o auxilio de mãos e rolou acertando os pés do guerreiro e tudo se esboroou e foi reduzido a pedaços e a nebulosa voltou a ser meteoros e rochas que se espalharam pelo céu.

O surpreendente, é que a pedra que feriu os pés da estátua começou a crescer e encheu a terra… E isso tudo vimos nos céus e após o crescimento da pedra houve uma mudança substancial na terra e nos céus. Uma compleição entende?

Ella parou por um longo tempo e depois perguntou:

– Você sabia disso?

– Sim.

– E como? – Perguntou o leão.

– Temos uma importantíssima literatura que vêm de muitos séculos e no meio dela há alguns livros que chamamos de velho e novo testamento. A história da visão dessa estátua está lá como um sonho de um dos nossos maiores, quem sabe se o maior rei. Foi interpretado por um sábio na época.

– Conte – falou a pantera com um leve toque de ansiedade controlada.

OS DOCUMENTOS ANTIGOS E OS DOMÍNIOS DOS HOMENS

Levantei, caminhei um pouco. Estava meio tenso. Todos olhavam em meio a uma expectativa que me acrescentava certo peso… Olhos estranhos e poderosos fitavam-me. Não sentia medo e sim importância. Nunca fui tão ouvido e com tanta atenção como naquele momento.

– Os textos dizem que fomos criados num bonito jardim para sermos indivíduos e importantes como tal. Mas logo no começo da história aconteceu alguma coisa que não sabemos bem. Estragou tudo. Perdemos-nos e começamos a abusar da terra, procurar dominá-la bem como aos nossos semelhantes. Multiplicamo-nos demais. E a ênfase em termos de liderança ficou com o controle do coletivo e isso cada vez mais teve que ser feito por poderes centralizados. Formaram-se os Domínios onde a política, a força, a manipulação da culpa que ficou com a crise inicial e o medo eram importantes para nos manter coesos e juntos. Domínios grandes e menores. Todos terríveis. O controle.

– Isso não junta nada! Controle não produz unidade – disse o guerreiro.

– Claro que não, – concordei. – Não multiplicamos o jardim onde fomos criados e sim a violência o abuso e a morte. – Desculpe Tânatos, “o” morte. A sua área!

Ele apenas fez um sinal para eu continuar. Estava atento.

– Os Domínios aprenderam com esmero como manipular o poder. Ficaram perfeitos na arte de produzir em nós um mal a que poucos estão conscientes: o intenso desejo de “participar em algo maior… o de ser de”. Por isso os Domínios lutam. Para estarem no ponto de ser o foco do desejo do homem em “pertencer a”.

Os Domínios se transformaram na expressão prática da identidade de uma pessoa! O anelo genuíno por uma dimensão espiritual, o relacionamento com O que criou tudo fica substituído pelo “participar em algo maior”. O Domínio se tornou parte da alma de um ser humano.  Gente, o aspecto mais sinistro do Domínio é a sua face religiosa que trabalha com o sentimento de culpa e se oferece como expiação se você se torna “parte dele”.

E em nossa história, logo que um Domínio se estabelecia, mandava por pouco tempo e outro o derrotava. Substituição! Os Domínios lutam pelo individuo! Depois de possuído o indivíduo tomado por ele se destrói.

A guerra tornou-se fundamental! Há milhares de anos guerreamos. Nossa vida é a guerra, respiramos a guerra, a indústria da guerra é a maior e mais poderosa, e a… “o” morte campeia. Nascemos num lindo mundo. Logo pegamos o pior que há. Somos treinados pelo Domínio da vez. Lutamos para nos amoldar a ele e viver segundo ele. Cansamos e um dia saímos da vida sem entender para onde vamos e o que fizemos na realidade.

– Isso é terrível – disse Tânatos com uma expressão de espanto. – Como vocês aguentam isso tudo? É verdade. Vejo isto nos olhos de todos que “colho”.

A dama lindíssima e alta continuava em pé na sua postura nobre e senti que estava muito triste.

Continuei empolgado. Já falei para outros grupos, mas muitos dos participantes deles dormiram! Todos daquele grupo ali bebiam as minhas palavras e os seus olhos estranhos, bonitos e selvagens olhavam dentro da minha mente o que as palavras significavam para mim. Não dava para enrolar aquela turma.

– O rei que viu a estátua, – prossegui – a viu em sonho e foi Nabucodonosor o rei da Babilônia. Um grande e sábio rei que reinava mais do que ele mesmo tinha consciência. Estava muito preocupado com o futuro do mundo e a resposta às suas indagações foi a visão da estátua que vocês igualmente vislumbraram, Ella. Creio que a visão mostra quatro dos mais importantes Domínios do mundo até hoje. – Fiz uma pausa.

– Continue – falou o fauno.

– Houve outros Domínios. Atualmente nossos amigos americanos mandam. Há uns duzentos anos foram os ingleses que “tinham um império onde o sol nunca se punha”, Mas, nenhum deles acrescentou nada de relevante ao mundo. Só o “mandar” e tirar o máximo de recursos existentes nos países “paus mandados…” E vender refrigerantes. Vocês já tomaram uma Co…

Além do silêncio senti no olhar penetrante de Ella um “não”.

– Tudo bem. Esqueçam. Mas esses quatro da visão nos céus têm valores, digamos… além do natural! Eles foram os modelos! Os outros, – antigos ou atuais – somente algumas formas transitórias.

Um silêncio total.

– Nabucodonosor foi a cabeça de ouro. A cabeça. O Primeiro, o maior. Nada se comparou ou equivale a ele. Ele reinou no mundo inteiro. Ele liderou o Todo. Demais o Nabuco. Nem ele sabia disso e não sabemos os detalhes, mas penso que foi o primeiro reino mundial.  Depois vieram os Medos e Persas que tomaram a Babilônia e o lugar dela! Mas não tinham o poder e a sabedoria dos Babilônios.  Eles foram o peito e braços de prata. O segundo Domínio.

E após eles veio o bronze! O ventre e os quadris de bronze. O terceiro e dominou a terra. Reinar é uma coisa, dominar é outra.

Tinha um garoto que frequentava um grupo pequeno, informal e agradável em torno de um dos mais impressionantes filósofos gregos: Aristóteles. Não gosto muito dele. Foi grande e meticuloso e veio para colocar os pensamentos dos homens em ordem… Muita ORDEM pro meu gosto. Os meninos aprenderam demais. Um dia o mestre desenhou no chão um mapa do mundo e sugeriu que a cultura grega deveria ser o espírito desse mundo. O garoto, Alexandre, comprou a ideia, cresceu e um dia ele, rei, desembainhou a espada e comandou homens para transformar o mapa em realidade! E o fez! Venceu os medos e persas e foi longe pelo mundo da época. Até a Índia! O chamamos de Magno. Perfeito o apelido. Alexandre uniu o CONCEITO com a PRÁTICA e mudou o mundo!

O silêncio continuava denso até que uma criatura que não aparecia, mas podia ser sentida, à minha frente, expressou:

– Grandioso. Assustador!

– E vem o quarto Domínio que é uma extensão do terceiro, como eu penso pelo menos. Os romanos. O ferro. A organização e excelência militar os qualificaram para continuar a visão de Alexandre e surgiu um Reino que veio, ficou e é o nosso hoje em dia. Estamos no mapa que Aristóteles desenhou no assoalho da sua escola. Bem-vindos. – Abri os braços! – Ninguém riu.

– Mas os romanos se foram como todos os outros – falou o guerreiro.

-Sim. E demoraram muito, muito mais do que os outros.  Vejam – levantei-me e comecei a caminhar pelo espaço olhando-os, quando podiam ser vistos… Constatei que havia mais três seres não visíveis.

Há dois tipos de domínio: Um é o físico, o país, o povo o exército, a cultura. O outro muito mais sofisticado não observado e por isso mesmo o mais eficaz e o que faz o mundo ser o mundo: o Domínio das Idéias! Milhões de pessoas passam suas vidas e um dia encontram o nosso amigo Tânatos aqui e NUNCA perceberam que vida, pensamentos, uso do tempo e dinheiro e almas são forjados pelo Império das Idéias. O cara morre pensando que pensou.

OS DOMÍNIOS E A PEDRA

– E o que significa o estar em Roma hoje em dia? – perguntou Ella.

– Nossa cultura é grega, nossas leis são romanas e há no mundo uma grande Roma “espiritual”, uma religião que é Roma; uma estrutura forjada. Um Domínio religioso e poderoso! Só que ele tem o ferro mesclado com barro no sentido que o poder original foi perdido para a ciência e as pessoas estão questionando coisas que na nossa Idade Mádia dariam fogueira em dois toques. E as culturas se mesclaram demais. Tudo está virando um bolo só.

– No seu pensamento o que é a pedra? Um império diferente dos outros? Um Domínio bom? – O leão falou com uma voz grave e seus olhos se mantinham direto em mim, movendo-os, às vezes para Ella.

– A pedra é fator que vai terminar com o comando pelos Domínios. Não se engane… Não existem domínios bons! O sistema chamado “Domínio” vai ser detonado. A pedra muda tudo e nem podemos entender hoje como o mundo vai ser no futuro. Tudo vai mudar substancialmente, qualitativamente e quantitativamente.

Certo zum-zum no meio deles. Emoção, excitação me pareceu.

Uma das criaturas que não se podia ver (por mim, pelo menos) veio a minha frente e pude notar um revérbero esverdeado apenas no ar e numa voz suave como um vento ela perguntou:

– Me diga… o que é a pedra?

Fiz uma pausa e um ar de surpreso. E eu estava.

– Vocês… Vocês realmente não sabem?

– Não – disse a criatura naturalmente. Fale.

ELE

Simples. – falei – Alguns dos nossos documentos antigos dizem que ela, a pedra… é uma pessoa! É Ele.

– Sério? Perguntou a pantera.

– Claro. Nossos documentos falam que Ele estava com o que criou tudo desde a eternidade. Que tudo foi feito por Ele e através Dele o que inclui cada um de nós e o que podemos ver criado na terra e fora dela. – Sorri – Vocês também!

Os textos dizem que Ele nos fez indivíduos. E que Ele entrou, invadiu a história do mundo criado por Ele e fez-Se parte dela criando condições para que no tempo certo os Domínios passem… Um dia voltaremos ao tempo do valor do indivíduo e a importância dele… E ao jardim para multiplicá-lo criativamente na sua beleza e simplicidade.

Espantoso o clima que se instalou enquanto eu falava. Uma alegria indescritível correu como uma faísca e mesmo a dama belíssima sorriu um meio-sorriso que revelou melhor a sua beleza. As criaturas andaram de um lado para outro e se abraçaram. O leão caminhou na minha direção com leveza, agilidade e me olhava fundo. A calma e a força dele eram gigantescas! Parei de falar e fiquei olhando e sentindo a atmosfera de encanto.

– Obrigado – disse o leão.

– Então Ele veio… – falou Ella com os olhos brilhando.

-Ella, eu disse que os nossos documentos antigos, alguns deles, afirmaram isso e…

– Você crê nisso?

– Sim, acredito…

– Então Ele veio! – disse ela com uma leve entonação tipo confirmatória na frase e riu um riso alegre, o primeiro riso nela que eu vi. Ella ria inteira!

Também andei de um lado para o outro nos papos, abraços e manifestações de alegria. O centauro apertou a minha mão e vi que mudara o juízo a meu respeito. Um rosto nobre, forte que parecia ter sido esculpido em um bloco superior de músculos, epiderme e barba.

O congraçamento era uma coisa muito bonita! O Vai e vem fazia parte da “reunião” eu entendi! O guerreiro aproximou-se de mim e quando começou a falar voltamos de novo aos lugares.

– Mario, nós sabemos que o que você disse faz parte da sua interpretação da história e está sujeita aos seus fortes, cultura, limites, gostos e até definições pessoais. Mas a informação foi fundamental. Agora sabemos que Ele esteve aqui e isso nos ajuda em alguns planos. Estamos indo bem! A fase atual está terminando como suspeitávamos; e, mais breve do que imaginamos a mudança vem. Você está com está nossa turma. Ele, o que veio e vem novamente no tempo certo e Ele viu que deveríamos saber de aspectos do Plano com um ser humano comum como você e…

– Obrigado pelo “comum”.

– Não por isso. … a nossa amiga Ella o conheceu em São Francisco e acertou! E te trouxe no momento certo!  Devo dizer-lhe que há outros grupos pequenos com outros seres humanos como você – ele riu – e “criaturas”, como nós em outras frentes. Não nos vemos, mas não estamos sós e estamos juntos!

– E sendo da turma o que eu poderia fazer para ajudar no esforço “comum?”.

– Duas coisas. Uma: continue ensinando, falando, escrevendo; insistindo na importância do grupo de amigos caminhando juntos e o afastar-se de religiosidades e seus domínios. Fundamental. Não perca o seu valioso tempo com coisas grandes e ênfases no coletivo. Dois: você vai contar para Ella tudo em torno da vinda Dele, como foi que Ele veio, o que Ele fez e como o fez e como saiu e o que prometeu para o futuro em termos da Grande Mudança. Ella vai nos passar tudo… Só isso!

– Só isso… – Pensei assustado.

– Não se preocupe – disse Tânatos fingindo seriedade – Você é um comum “especial”, sabia? – ele me segurou pelos dois ombros – Vamos nos encontrar de novo… – Riu – e fique frio… só para papos… Nada de um encontro “funcional”!

– Por enquanto… – Falei genuinamente alegre. – A eternidade atrás dos olhos de Tânatos era agradável.

Tânatos continuou num tom reflexivo.

– Vocês são corajosos. Bravos! Agora sei por que. Tudo para vocês é o incógnito. Cada um de vocês é uma incógnita para si. Podem não terminar um dia, uma semana. Não sabem como vai ser um projeto novo, um relacionamento ou uma batalha… ou a guerra. E vocês têm muitas guerras… e a vida é a maior delas! Imensos desafios diários e olhando mais para frente não vêem o que vem depois de MIM! Nem sabem se existe o depois de MIM. Outra incógnita. Vocês precisam ter esperança contra a grande desesperança. Vocês têm mais coragem que os deuses. Parabéns. Cara, agora sei por que vocês não gostam de mim! Tudo que vêem é o fim e eu o personifico. Que chato isso, meu. Que saco…! – E fez um bico enorme.

– Tânatos, desculpe tá! Optamos pela coragem! É melhor que o puro desespero. O desespero faz com a gente encontre você antes do tempo!

– O pior desse negócio todo ficou comigo… Que coisa mais chata! – Resmungou Tânatos. Ficou irritado a ponto de eu me assustar. Muito irado o cara! Mas foi acocado por todos e aos poucos melhorou. Nada que um bom abraço não possa resolver.

E mais uma agradável onda de conversas, abraços, frases e ânimo.  Era uma despedida sem o peso de estarmos indo embora. O fauno me deu um abraço que quase me fraturou algumas costelas. Outros acenaram.

O meu antepassado atarracado postou-se a minha frente sempre me olhando com curiosidade. Sorriu um sorriso imenso pela desenvoltura dos maxilares e falou numa voz agradável:

– Não se preocupe meu amigo. Um dia quando nós descobrimos a acha de guerra e começamos a usar o fogo também pensamos que tudo estava resolvido! Mais ou menos o que vocês sentiram no momento em que entronizaram a ciência como a solução para o mundo. No nosso caso, depois, surgiram as flechas incendiárias! No de vocês a bomba atômica!… Nada mudou a não ser alguns detalhes anatômicos… – e olhava para o tamanho da minha cabeça! – Mas com a volta Dele tudo vai se transformar… Refiro-me ao mundo – disse ele rindo – e não ao seu crânio! – E me deu um abraço.

O guerreiro me olhou e baixou ligeiramente a cabeça num cumprimento e depois se foi com a belíssima dama. Notei que eram considerados deuses pela turma. Mas eram diferentes dos deuses gregos. Interessante.

E chegou o momento em que ficamos somente Ella a pantera e eu.

Continuamos falando e fomos andando juntos numa direção que senti ser uma das saídas daquela dimensão. Um pouco depois a felina encostou a cabeça no meu braço. Dei um leve toque na cabeça dela – o que eu estava querendo fazer a horas. Ela gostou! Ronronou alegre e tomou outra direção. Ella e eu estávamos a sós. Prosseguimos e ela estava muito quieta.

DISCUTINDO A RELAÇÃO

– Escute…

– sim.

– Quero te dizer uma coisa… Posso?

– Claro que sim.

– Desde que existem os mares eu Sou e a minha vida prima em estar neles e viver e aprender e servir a vida que há no mar.

– Maravilhoso! Que inveja…

– Agora vem você na minha vida. Não nos conhecemos bem. Nossas experiências de vida são profundamente diferentes e opostas. Mas, válidas. Existimos sob o sol!

– Sim…

– A turma que você conheceu hoje existe há séculos, na sua visão do tempo. E já ajudamos no esforço de manter as coisas dentro de uma visão do Bem.  Somos bons amigos mesmo que, como você viu, somos diferentes. Você está com a gente agora.

– Um privilégio…

– E você vai contar uma coisa importantíssima para mim, uma “criatura”, como o diz. Assim seria legal que deixássemos algo mais claro entre nós!

– Tudo bem. Por favor, fale.

– Sou uma “criatura” séria, sabia? Os séculos, o mar e a intimidade com a luta e a morte…

– “O” morte – corrigi-a.

-… me mostraram que a seriedade é importante. A beleza também ensina o mesmo. Para que possamos nos entender bem eu adoraria ser tratada assim, com seriedade. Entende?

– Entendo, mas explique um pouco melhor… Ajudaria.

– Não me sinto bem com gracinhas e o seu jeito meio irônico… Você tem um conteúdo enorme e, pelo menos no meu caso, ele precisaria ser passado de um modo contínuo e mais sério.

– Já senti essa coisa que você falou também com outros, mas você é a primeira pessoa que fala claro e arrisca a nossa amizade para melhorar a comunicação. Outros sempre falaram isso… para os outros.

– Não perca o seu tempo com eles. Não se pode falar com todos os que surgem e muitos não merecem o tempo dado a eles. O tempo é o único bem que vale a vida. A vida é o tempo.

– O que você disse agora é quase tudo que aprendi em todos os meus anos de vida. Agradeço muito e vou procurar de coração e por gostar de você, melhorar o meu jeito de falar e estarmos juntos.

– Gostar de mim? Que bom… Mais uma coisinha… Posso?

– Sim.

– Você vai me falar sobre Ele. Preciso confirmar se Ele veio ou se continuo esperando. Se Ele veio, vocês vão assumir o seu papel na natureza em breve. Nós a natureza, estamos esperando ansiosamente e precisamos de vocês para ser completos. Conte-me como Ele veio e de que modo; o que Ele disse sobre ele. Com quem falou e o que Ele ensinou sobre o mundo, os seres humanos. Tudo. Como Ele saiu. Mas quero que use os documentos antigos mais você e sua experiência de vida. Junte a mensagem Dele com a sua pessoa. Entendeu?

– Sim.

– E uma coisa a mais…

– Diga…

– Você não precisa me convencer de nada. Só me contar inteligentemente sobre Ele e responder as minhas perguntas. Entendeu? Detesto slogans! A natureza odeia slogans. A natureza e os slogans são opostos. Só preciso ter certeza em mim mesma que Ele veio. Você nos disse que sim. Creio. Agora é confirmar pelos documentos antigos.  Você só vai participar no meu “saber”, sacou?

– Sim. – E me abstive de fazer uma brincadeira com o magnífico uso da palavra “sacou”. Adoro essa palavra!

– Tá bom. Vai ser assim. Vou fazer o melhor. Deixe comigo.

– Obrigada. – ela riu – Também gosto de você… Sério… Gosto sim!  No duro mesmo… Não faça essa cara de tacho! Quer me dizer alguma coisa? Afinal eu já falei.

– Não!… Bem…  é melhor… olha…  Muito bem! Sim, quero.

– Diga.

-… Às vezes… tenho medo de você!

– É bom. Continue. Se me conhecesse melhor ficaria com mais medo. E você ainda não se assustou o suficiente!  Mas, vai indo bem!

– Obrigado! Você é muito gentil. Ella…

– Sim.

– Você acha que tenho a cabeça muito grande?

– Não. É uma cabeça normal… gosto dela.

– Ainda bem.

– O Hywintis crê que vocês tiveram seus crânios aumentados de tanto pensar em milhões de coisas desnecessárias. Uma espécie de arquivo morto ou depósito. Segundo ele – e Ella riu demais –, vocês só precisariam de uma coluna vertebral com muito pouco cérebro… o suficiente para se vestirem, atravessarem ruas, justificarem-se, criarem religiões artificiais e obedecerem ordens. Ele morre de dó de você que ele crê ter alguma esperança!

– Hywintis… Que cara legal. Veja só! É, e veja que ele ainda não ouviu o Jornal Nacional. Senão o pobre iria desanimar de vez… Um moço sui generis! Numa próxima quero falar melhor com ele.

E continuamos falando, caminhando e subitamente estávamos na rua de novo! Ella – pela primeira vez desde que a conheci – enganchou no meu braço. Achei o máximo pela espontaneidade dela, e por estar em Paris, na Champs Elysées, caminhando de braço dado com uma sereia.

A vida na verdade é uma grande aventura mesmo que muita gente muito ocupada não veja, não saiba… não sinta.

E tudo é simples.

Na frente da loja de artigos para esportes Ella sorriu e desapareceu.  O habitual. Entrei na loja e antes de encontrar o pessoal, zanzei pelos departamentos. Achei uma jaqueta por um preço especial: sessenta por cento de desconto pela época do ano. Incrível. Comprei-a na hora. Melhorou! Nada como aproveitar a maravilha de Paris com menos frio.

Curitiba, 5 de agosto de 2.010.
Mario Nitsche.

O presente trabalho está registrado na fundação da Biblioteca Nacional para fins de direitos autorais

 

Posted in Contos.