CONTO – O MAESTRO MARIO NITSCHE

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Foto – http://jr.inventionweb.com.br/

Amei a oportunidade de postar aqui um dos contos mais instigantes do Mário. O Maestro do livro Amor Maior. Sempre penso nele, O Maestro revelando o melhor de todas as coisas que espontaneamente estão sob a sua regência. Perguntei ao Mario quem é o Maestro e ele me disse: “Não se preocupe, ele vai achá-la. A sinfonia é viva e você tem um lugar importante nela.”
Bjos.
Adilse.


“Estradas
e compassos
marcam
nossos passos.”

Gília Gerling
Maestrina

O MAESTRO

Vi-me em cima de um prédio altíssimo. Assustador. A cidade por todos os lados estava lá embaixo com seus habitantes, ruas, ratos, vitrines, sonhos longínquos e vielas. O tudo criava a realidade de um espaço imensurável, aberto que diminuía e consternava a minha alma com a sensação do vazio tangível. As nuvens passavam próximas, ao meu lado, correndo e mudando de formas num êxtase. O ruído das pessoas, carros e descaminhos do mundo chegavam até onde eu estava experimentando uma artificial sensação de segurança, bem no meio do terraço. Amendrontadores os sons da desvida.

Vi o Maestro, imponente, em pé sobre o parapeito do prédio tendo o abismo aos seus pés. Estava à vontade. Era seu elemento habitual parecia. Preparou-se para reger. Um formidável silêncio perpassou tudo com grandeza. Ele era alto e estava vestido a rigor. Tinha cabelos brancos e postura elegante. A batuta em suas mãos brilhava. A sinfonia começou. No princípio ela era uma vibração inaudível, mas de uma beleza imensa que fazia bem, passando pelo meu corpo, espírito dando a dimensão de enlevo que acontece raríssimas vezes na vida de um mortal. Foi crescendo lentamente e existindo para os meus ouvidos. Muito bonita. Parecia que algo ia surgir, acontecer…

A música que ele regia silenciou o ruído das coisas e dos homens.

A música vinha de tudo, todos e dominava o ar, o mundo, espaços. Também pela cidade aos seus pés. Fluía dos apartamentos, casas, ruas e passos dos seres humanos caminhando céleres pelas ruas sem saberem bem aonde ir e indo segundo uma agenda criada por eles na desesperança de mais um dia. 

Aos poucos se impôs como música gloriosa com momentos vibrantes e trechos calmos. Bonita, nobre. A música fazia parte do sentido atrás das coisas. Ele a maestrava divinamente. Eu sentia, assumia a melodia além de ouvi-la. Criava períodos suaves, sublimes quase inaudíveis e depois altos e grandiosos alternados. Uma explosão da vida! Ou como uma carga de cavalaria dos antigos guerreiros com lâminas reluzentes ao sol. Meu corpo e minha alma acompanhavam a sinfonia.  Pensei em Mahler. Sim… Mahler, mas muito mais sublime e vi que isso era possível.  Depois como um perfume eu via – muito mais do que ouvia – trechos de um romantismo emocionante que vibrava nas células de meu corpo brincando com cada terminação nervosa. A música não o obedecia num sentido de domínio, e sim o Maestro a maestrava e ela dava o melhor e mais bonito da sua existência. A música criada precisava do Maestro para ser melhor e mais livre.

Em momentos falava de um amor grande. Dava vontade de beijar lábios bonitos da mulher e companheira de vida.

Ele conduziu durante um tempo sem limites a música que vinha do todo. Senti-me puxado para ela. Naquele momento tornei-me um pouco da música do Maestro. Música que era dele. Que ele tirava do âmago das coisas e da vida e que voltava igualmente à vida. Não havia espaço entre as notas. Tudo era música mesmo os silêncios. O silêncio é uma música que tem poder. E num acorde tão grande quanto o sol ele findou e os aplausos surgiram do universo e da cidade! 

Fez uma mesura agradecendo, desceu do parapeito com facilidade e caminhou com passos largos em minha direção, o que me encheu de medo respeitoso. 

Olhou-me longamente. Vi no seu rosto uma nobreza que não deixava dúvidas sobre sua função: o Condutor. Parecia um rosto vindo de muitas águas ou séculos. A calma e a força estavam ali estampadas. Mesmo que me sentisse a beira de um desmaio finquei o pé no chão, afastei ligeiramente as pernas e o encarei.

– “Onde está a sua música, moço?” – perguntou com uma voz suave.
– “Não tenho música, Senhor”.

Olhou-me por um tempo longo.

– “Procure-a. Ainda tem tempo. Sempre há tempo para a Busca”. 

E saiu. Simplesmente saiu e não o vi mais. Foi um comando. Eu queria achar a música. Ouvi-la. Tocá-la. Andei de um lado para o outro. Fui até o parapeito e pensei em subir. Dali eu iria reger! O vórtice, a altura imensa, o horror. Não consegui sequer olhar. 

Busquei uma cadeira ou uma coisa qualquer e vi um caixote velho de bacalhau que estava encostado na entrada do terraço. Coloquei-o bem no centro do limitado espaço de concreto que ficava no meio do nada.  Melhor. Mais seguro. Ah, uma batuta. Não vi nenhum pedaço de madeira ou ferro que pudesse ser uma. Um edifício como aquele sem uma batuta… Voltei ao caixote e arranquei um pedaço dele que já estava meio solto. Parecia bom. Olhei. Uma batuta quadrada… onde já se viu isso? Sem forma, afiada como uma lâmina… feia. Joguei o pedaço de pau fora, subi no caixote. Agora sim eu estava um pouco mais alto que a torre, olhei o todo, fechei os olhos e comecei com as mãos a conduzir… 

Nenhuma música. Nada. Apenas as coisas que passavam e o vento que ria de mim. O vento ria de mim… Desci com cuidado. Tudo que eu não queria era cair e quebrar uma perna ou braço no esforço de reger.  Deixei o caixote no mesmo lugar. 

Desci para o mundo dentro de um elevador com espelhos. Olhei-me. Até estava bem fisicamente… Mas não tinha música. Perguntei-me no momento, enquanto descia, por que o mundo tinha tantos espelhos?  Mostrar o que? Bilhões de espelhos gestando em seus úteros abertos e transparentes pessoas passando pela vida sem música, sem vida e olhando neles, os espelhos, seus corpos mudando; rostos perplexos onde não queriam ver rugas. Revelando sorrisos que começaram espontâneos e depois ensombreceram.  E mais espelhos… Uma ditadura de espelhos na Terra. Eles nos veem. Somos seus prisioneiros; somos as almas deles. Vamos mudando em frente a eles que um dia não refletirão mais nada. Vazios. Mal e mal vão refletir alguma coisa ou objeto que fizemos num momento que pensamos ser de glória. Os espelhos sim comandam o mundo e não os líderes que levam os homens à morte em guerras irrelevantes e com sentidos artificiais e comerciais. 

Eles refletem e riem com o nosso riso que vai rindo e indo. Até que outro riso apareça.

Embaixo fui para as ruas e caminhei pela cidade. Sons, buzinaços, viadutos. Gente tossindo, respirando, olhando e passando. Cheiros. Alegrias e desânimo. Gente na contramão e outros brigando com eles por isso.  Uma música cacofônica e irritante. 

Mas ao passo que a ouvia, pensava que ela era a única expressão honesta do que se poderia chamar de vida que as pessoas tinham; e que poderia ser reconhecida como honesta e ficar melhor; ou quem sabe mudar… Comecei a olhar não a multidão e sim indivíduos… Nesse momento uma nota da música do Maestro começou a se fazer ouvir, timidamente… dentro de mim!

M.Nitsche
08.12.07
Curitiba, PR.


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