CONTO – ENCONTRO COM CHERION. O CONCEITO E A PRÁTICA

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Cherion instruindo  seu jovem discípulo Aquiles. Afresco de Herculano. Itália. Museu Arqueológico Nacional. Nápoles.

“A Liberdade que temos inclui  um aprendizado constante.
Erros são bem-vindos no caminho, mas cuide-se.
Há lições que se você tiver que aprendê-las novamente
Isso pode não deixá-lo com tempo para viver.
Você vive uma só vez.”

Cherion o Centauro

Ele me olhava atentamente atrás de um sorriso aberto iluminando o rosto nobre.

– Que chique! – disse o centauro – Hoje então começamos o papo em Latim. Leu alto e solenemente:

“Longum iter est per praecepta, breve et efficax per exempla”. Longo é o caminho dos preceitos, breve e eficaz o dos exemplos. Traduziu ele bem devagar como que pensando alto.

– Será? “perguntou o centauro”. Você crê que a frase expressa uma verdade?

– Creio que sim.

– O que significa o seu “creio”?

– Que eu acredito, ora.

– Então me explique um pouco melhor o seu “acreditar”.

– O que ama na prática comunica melhor do que o que escreve um longo romance entende. Ou o que ouve com carinho e atenção melhor do que aquele que escuta só o suficiente para poder pôr para fora o seu interior
.
– Tem jeito de lógico. Sério. Mas sinto no seu jeito, assim… que há a sugestão que o preceito é negativo. Isto é o que me preocupa.

Falei meio exaltado.

– Completamente negativo. Preceitos me cheiram teoria. A prática é melhor e produz resultados visíveis.

– Então tenho três perguntas. – falou o centauro – O que é teoria? E quando, e em meio a que circunstâncias você começou a pensar desse modo? Que são “resultados?”

Refleti um pouco. Dizer que teoria era uma coisa teórica não respondia a pergunta e nunca pensei antes quando foi que comecei a crer o que expus ao grande centauro. Olhei à cena que se formava aos trambolhões em minhas lembranças.

– Um exemplo. – falei levemente confuso – Posso dizer com clareza que amo o meu semelhante de coração e quero o bem dele; e no fazer decisões onde ele está incluído desconsiderá-lo.  O amor aqui é teoria.

– Certo. Quando amamos queremos a integridade da pessoa amada. Concordo. É o que eu chamaria de óbvio ululante parafraseando o Nelson Rodrigues. Apenas creio que a sua idéia do agir sem o preceito é esquizofrenia.

– Então o que seria uma situação normal e aceitável no seu ponto de vista?

– A situação saudável é quando há um preceito e ele está inextricavelmente ligado à vida, aos atos. Assim quando você faz algo o ato tem como base o preceito. Ambos são “a” unidade. Marcio você já leu a parábola do bom samaritano contada pelo Khistós? Leia. Ali o preceito e a ação estão juntos.

– Preceito?

– Isso mesmo. E o preceito é o passo espiritual que precede e acompanha um ato. Preceito é um ensinamento, um princípio. Sem preceito o ato é louco e dissociado da realidade.

– Então vivemos num mundo sem preceitos.

– Não. – falou o centauro – vivemos num mundo onde se age apenas com base numa grande neurose e os preceitos são ignorados.

Cherion falou com muita calma.

– Marcio ‘Teoria’ também é importante. É uma ação! A de contemplar, examinar, estudar. Por ela se entende melhor alguma coisa. Vamos chamá-la de uma ‘opinião sistematizada’. Entendeu?

– Entendi. – uma nuvem passeava pela minha mente – Diga-me então, em sua opinião… – e tive que rir de mim mesmo – o que foi que eu disse!

– Você descreveu um comportamento doentio, neurótico ou até maligno onde atos estão alienados de um preceito.

Novamente fiquei quieto. Cherion falou:

– Quando foi que aprendeu a fazer coisas sem pensar? Onde? A que resultados você se refere? Que resultados seriam melhores alcançados pela prática sem o preceito?

Olhei para ele que estava sério e imerso em nossa conversa e formou-se em minha mente uma figura da gênese do arcabouço do jeito de pensar que discutíamos.

– Creio que essa linha de pensamento começou depois das implicações de uma ideia que vivemos há muitos anos. Quer ouvir?

– Claro. Adoraria. Fale com calma. Temos todo o “momentuum” do mundo a nossa disposição.

Esperei um pouco para que as palavras se encaixassem em alguns pensamentos desencontrados que vinham céleres.

– Cherion, eu gosto muito de cozinhar! Sempre gostei e por isso aprendi pratos exóticos ou simples, sofisticados e bons. Pesquiso, leio, ouço e cozinho.

– Muito bem. – E ele sorriu.

– Um dia descobri um cara e uma mulher, Edu e Duda, que tinham o mesmo jeito e gosto pela cozinha. Fizemos amizade e começamos falar interagir e cozinhar juntos. Agradável. Minhas melhores lembranças são daquela época.  Trabalhávamos durante o dia e quando nos encontrávamos para conversar e cozinhar a vida ficava melhor, mais leve e divertida.

– Uma experiência de vida! – Cherion estava empolgado genuinamente.

– Isso. Um dia concluímos que poderíamos divulgar o nosso cozinhar! Cozinha via amizades; multiplicar o que fazíamos e vivíamos. Uma aventura começou. Descobrimos uma dimensão: a alegria de passar o que curtíamos para outros.

– Beleza!

– Depois Duda trouxe outra amiga a Mara e o Edu um amigo dele o Edmundo. Ficamos em cinco e logo decidimos que iríamos ficar assim. Era uma atmosfera das melhores. Conversas, saídas; dividir vida e resolver pontos de vista conflitantes na vida e na cozinha o que nos aproximava mais. Era bom. Só isso.

– Um presente! – disse Cherion.

– E nossos jantares e almoços ficaram maravilhosos. Mais umas quatro pessoas vinham às refeições. No máximo dez pessoas à mesa. Só. Um dia Edu, Mara e Edmundo começaram um grupinho com mais algumas pessoas. Foi uma descoberta!

– E daí?

– Coisas desencadearam-se rapidamente. E por motivos profissionais o amigo de Edu, Edmundo mudou-se para Santo Antonio da Platina e espontaneamente começou um grupinho lá. Visitávamos um ao outro para conversas e trocas de idéias. Depois surgiu em Curitiba mais um grupo.

– Legal!

– Mas num grupo em Curitiba surgiu um cara que freqüentava uma escola oficial de culinária. Ele ficou extasiado com a gente pelo nosso cozinhar e a independência e personalidade dos grupinhos e trouxe mais alunos da escola para freqüentar as nossas reuniões de cozinhar.  Nesse ínterim surgiu outro grupo em São Paulo. Encurtando a conversa, via a Escola de Culinária, um dia tínhamos um líder nacional e equipes de liderança nos locais e as conversas em torno do cozinhar diminuíram e aumentou uma política interna coroada com brigas por liderança. Impressionante a mudança, cara. O clímax do prato artificial foi quando alguém estreitou contato com um grupo de uma Escola de Cozinha no exterior.

– E apareceu uma chefia internacional! Você respondeu a terceira pergunta. O resultado buscado refere-se a buscar mais gente. Agir sem pensar ajuda ter números. A urgência em pôr filial no mapa. Muitas. Do jantar com amigos e bons papos aos números. Duas visões diversas. Confusão!

– Sim! E aí ficou forte o conceito que falar discutir e filosofar eram inúteis e tinha-se que agir! Estudos e artigos foram montados para provar esta fórmula. Resultados foram mostrados e o processo de relacionamento diminuiu. Muita conversa sobre lideranças, chefias e alguns líderes foram apontados. E precisávamos comunicar o que estávamos fazendo com pessoas em liderança no cozinhar.

– Um controle. E vocês ainda cozinhavam?

– Sim, mas tinha muito mais gente falando e fazendo política da “cozinha” do que cozinhando e o conteúdo dos papos nos jantares ficou denso sem a espontaneidade de antes.

– Você descreveu o nascimento de uma estrutura onde a chefia substituiu a liderança espontânea nascida do cozinhar e estar com as pessoas. Nas chefias de uma estrutura é comum o fazer sem necessariamente entender o que se está fazendo; o agir sem o preceito é o requerido porque a direção vem de cima para baixo e tem que ser obedecida e há controle. O “preceito” é formado pelos que estão acima. É o pensamento que podemos chamar tipo “império”.

– Cara… Era uma ideia tão boa, simples…

– E são as idéias simples que atraem, apaixonam as pessoas.  Depois vão sendo mudadas e as chefias necessitam aprisionar gente dentro da estrutura chamando a prisão de “unidade”.

Cherion ficou muito sério e continuou.

– Um resquício desse modo de pensar ficou na sua mente porque você, depois do seu, digamos… estágio na estrutura, lutou contra a corrente, o que ajuda a fixar o erro na vida. Lutar contra a estrutura é inútil, perigoso, perda de tempo além de estragar a cozinha! Márcio a sabedoria dos séculos diz que “o homem que passa muito tempo lutando contra dragões fica muito parecido com eles”.

Ficamos em silêncio por um bom tempo. Depois Cherion perguntou:

– Posso continuar fazendo observações?

– Pode.

– O perigo oculto, meu amigo é que sempre se tem a esperança que a coisa vai mudar. Observe que a estrutura busca jovens por que eles querem algo grande e um lugar no mundo. O ser humano nasce com a ingência em conquistar o mundo; ter uma função nele! Como se fosse um comando entende? – Cherion sorriu de novo – E é um comando e é bom.  A corruptela do viver a beleza do conquistar (que é genuína…) é o Poder Tipo Controle. Ele corrompe o desejo saudável e confunde tudo. Pensa-se que a estrutura vai servir na multiplicação do cozinhar e ter alguns amigos. Vocês Homo sapiens confundem facilmente o trabalho nobre para estar no mundo com o esforço pela estrutura que usa a cozinha como um ponto de partida para perpetuar-se.

– Começo a entender Cherion. Mas, considere que o viver implica em trabalho e finanças. A confusão é normal. Pensa-se que se pode juntar uma coisa que gostamos muito de fazer com o trabalho para viver.

– Mas pode-se, e esta é a função dos pais e bons líderes, ensinarem ao jovem a importância do genuíno trabalho. Márcio, poder e dinheiro são gêmeos. O romance que engendra o domínio é a paixão pelo controle. Veja só, – disse o centauro com um jeito alegre se ajeitando no seu trono de pedra com um sorriso luminoso no rosto sério – Você descobriu um princípio universal e viveu o outro lado! Sua avaliação vale muito. Agora pode ensinar. O conceito e a prática estão ligados na sua vida.

– Estou acompanhando o que você diz e ficando assustado… Ou “p” da vida, nem sei.

– Veja, criar uma estrutura grande ou pequena é uma visão. Pessoas íntegras podem desenvolvê-la e nesse caso deixe que elas a vivam e se responsabilizem por ela. Não participe. Só isso. Fique longe. Não invista o seu tempo em ficar “discutindo a relação” com ela.  O tempo é um tesouro que você não precisa buscar. Já o tem. Cuide dele. Eles continuamente vão precisar de pessoas como você e seus amigos para “enfeitarem” a estrutura e torná-la fonte de resultados. Mas, eles sempre vão comandar o “enfeite,” vocês!

– Só um simples “não” resolve?

– Um não, não é tão simples. Ele é um passo na direção da maturidade e cria a possibilidade de bons “sins”. Não se esqueça. A Liberdade que temos inclui um aprendizado constante. Erros são bem-vindos no caminho, mas cuide-se. Há lições que se você tiver que aprendê-las novamente isso pode não deixá-lo com tempo para viver. Você vive uma só vez.

– Assustador!

– E para tudo ficar saudável aprenda a dizer “não”. O desafio é que vão procurar convencê-lo e há gente hábil nisso.

– Cherion, já ouvi deles que temos que ficar juntos por que somos amigos…

– Você acredita nisso?

– não.

– Por quê?

– Se você mudar da sua confortável caverna para Curitiba, ler uma frase interessante escrita por alguém do partido dos trabalhadores e simpatizar com ela vai ser chamado de Companheiro… Em torno da palavra forma-se uma auréola mística. Tem gente que vem de longe; fritou um ovo ou leu algo sobre cozinha e chama a gente de Amigo (e o significado mágico gruda nas cinco letras) e quer colocar coisas na nossa agenda…

O centauro riu. Depois continuou um pouco mais devagar.

– E alguns que o ajudaram no processo de navegar na cozinha tipo estrutura crêem que você deve algo a eles, não!

– Acertou!

O rosto de Cherion num instante ficou sério e o brilho da força que se via nele chegava a assustar.

– Marcio, o grande mestre em todos os céus que veio este mundo um dia deu a alguns amigos um presente: a Vida.  E lembrava sempre aos amigos que a receberam de Graça, que de Graça deveriam dá-la. Entendeu?

– Um desafio viver assim, Cherion. Não dever nada a ninguém e ninguém dever nada para a gente. Liberdade!

– E lembre-se que ‘Os Cozinheiros’ oficiais usaram o seu nome e história de vida! Marcio a história de vida de alguém é a pessoa mostrada em princípios e vale muito em estímulo para viver. E, – neste ponto ele ficou sério e irado – vale também como poder para quem trabalha com influências. – Depois ele sorriu alegre. – Márcio a liberdade produz pratos sublimes! – E agora vem o prático. Sugiro que continue como no começo da aventura, cozinhando com prazer… e sem clubes!

– Isto é maravilhoso, cara, é demais!

– Tenho uns convidados para hoje à noite. Amigos. Quer fazer um jantar para nós?

– Quero. Meu Deus se a Duda estivesse aqui…

– Ela está.

– Está aqui? Tá maluco… pirou?

– Não. Venha ver.

Saímos e passamos por outros ambientes notáveis na caverna dele. Logo entramos numa sala de jantar soberba com uma mesa de madeira muito bonita já pronta para nove pessoas! Uma abertura e depois dela a impressionante cozinha e próxima a um fogão esculpido num bloco de pedra cheio de charme, o charme de Duda! Ela correu para mim me abraçou e me beijou a testa.

– Marcio querido. Nunca pensei que um lugar assim existisse…  Meu Deus… olhe que cozinha linda! Ai…, Sabe, quase morri de medo dele – apontou para Cherion – mas ele é muito legal! E nem sei como, mas vim aqui! Eu estava saindo de uma loja lá em Curitiba e me vi aqui. Meu Deus olhe as “compras”… Vamos fazer um Bacalhau Assado com Molho Cítrico? O que você acha? Vamos, Né… – Ela ficou mais para dengosa, olhou para Cherion – Deixe o pobrezinho do Marcio respirar normalmente e começamos. Ele é meio lento, sabe. – Voltou-se para mim – e como sobremesa ficaria demais um Rocambole de Amêndoas e Chocolate! Eles vão adorar.

– Não se preocupe Duda. – disse Cherion rindo – Está tudo aí. Vou sair e quando o jantar estiver quase pronto volto com os meus amigos. Vão gostar deles. Duda mostre o vinho para o Márcio quando ele fechar a boca.

Afastei Duda um pouco. Ela, me abraçando, gritava tudo isso próxima do meu ouvido, agitadíssima.

– Sim vamos olhar tudo e começar. Bom que você já sugeriu o cardápio.

– Ah, – disse Cherion saindo – Usem tudo. Alguns dos meus convidados são ótimos de garfo!

– Já notei – disse Duda, rindo – quanta coisa boa!

Cherion saiu. Duda e eu conversamos por muito tempo e naturalmente começamos a trabalhar no jantar. Cuidamos de todos os detalhes e Duda era ótima neste particular. Um pouco antes de tudo pronto ouvimos gente chegando. Um ruído de passos e cascos. Fomos à sala de jantar e Duda quase desmaiou! As seis criaturas que estavam ali eram de tirar o fôlego. Ao lado de Cherion uma centaura bonita, esbelta com um ar inteligente e que nos olhava com curiosidade. Um pouco mais para trás um homem muito alto e impressionantemente forte. Cabelos e barba negros, cacheados e vestido com uma pele de leão na qual havia ainda a cauda! No meio do movimento de guardar um arco e uma alijava de flechas a mulher mais bonita que já vi na vida. Alva. Olhos muito claros e cabelos brancos aloirados. Aparentemente frágil. Aparentemente… Sorrindo, um fauno de olhar divertido e bom. Ele aproximou-se e perguntou sobre o carnaval em Florianópolis!

– É muito bom – disse Duda – demais de animado lá na Ilha, bicho! E você já está pronto para a folia!

Todos riram. Um ser humano também estava no grupo. Mas não conseguimos definir a qual raça ele pertencia. Educado, firme e agradável. O mais impressionante no grupo era um grande guerreiro negro. Sua pele parecia azulada e tinha tudo de um homem nobre.

Cumprimentamo-nos com alegria. Duda ria, falava e deixava a todos em casa! Ela assumira o jantar e a caverna!

Sentamo-nos à imponente mesa bem no meio do salão.

– Muito obrigado pela presença de vocês, Duda e Marcio. Meus amigos queriam muito conhecê-los – falou Cherion.  Eles sabem que vocês gostam de cozinhar e alguns amigos e ver isto se multiplicando. É um princípio que precisamos manter. E hoje a satisfação de tê-los conosco, um jantar feito por vocês e um bom vinho! Um brinde!

– Ter uma cozinha com um veio lindíssimo de água a uns 15 graus é demais, é bonito… Perfeito para o vinho! – Duda estava quase fora de si.

Cherion sorriu.

– Muito bem Duda e Marcio. Então à saúde. – Levantamos as taças.

– A saúde repetiu Cherion – Ao nosso jantar e Longa vida a vocês!

Mario Nitsche
Curitiba 23.01.2011

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