CONTO – ATE A DEUSA DO ERRO – CONTOS MITOS E PARALELEPÍPEDOS

Ate é a deusa do ERRO.

Bonita, suave, persuasiva.
Num caloroso papo pessoal ela cria uma
atmosfera de cuidado, ocupação com o bem estar de alguém e começa a expressar para o interlocutor uma preocupação com este alguém.
Insinuações levíssimas. Tudo para o bem é claro. Até entra um texto religioso para servir como parâmetro e ‘só entre nós’.
A coisa vai indo de um lado para outro (em segredo…) na conversa vai e conversa vem até que por um verdadeiro milagre, um dia o alguém está na boca do povo com histórias até bizarras em torno dele.
E ele, o falado é o último a saber como sempre.
Dizem que ela foi atirada lá do Olimpo para a Terra onde há milhares de anos tem um notável trabalho entre nós!

“A língua é um fogo.
Um órgão pequeno colocado no meio de todos os outros e contamina toda a pessoa  e incendeia o curso da vida dela; e a língua é colocada a arder pelo próprio inferno.”
Tiago
Novo Testamento.

ATE UMA DEUSA ATUAL.
O Olimpo esplêndido! O azul profundo o vestia de glória. Clima ameno, paisagens vivas e a atmosfera eterna perpassando pelo todo. Os deuses felizes “olimpavam” de um lado para o outro em grandes papos sobre tudo e partes importantes do nada. Saudavam-se com cânticos e “ôis” simpáticos e divinos, tanto era a beleza do estarem uns com os outros por tantos séculos. Riam muito. Personalidades brilhantes, distintas, marcantes. Suas vidas e quereres ocupavam o tempo eterno deles.  Um dia a deusa Ate convidou sua amiga a titânide Minemosine para uma caminhada. Assuntos numa mescla de graça, fruição e beleza. Num momento, Ate tomou a mão de Minemosine e falou:

– Mine querida… quero te contar um sentimento. Sabe, tenho visto a Hera e notei, ou penso que observei que ela está com alguma coisa. Parece-me uma atitude estranha… Entende?…  Algo pegando! Sei lá. Não sei bem o que é e estou louca para ajudá-la… Eu a amo. Mas ajudá-la no que? – ela sorriu um sorriso lindo e com uma pitada de coisa enigmática – Você que é tão observadora percebeu algo nela? Não deveria te falar nisso, mas está escrito que precisamos ser abertos entre nós. É uma lei e…  Ah! Esqueça. Delete, tá!

– Não vi nada e estive com ela recentemente – Minemosine ficou estática por um tempo como que visualizando na mente o jeito da amiga Hera, – Pode ser que você tenha razão, Ate… pode ser. Uma coisa que passou agora pela… Bem, depois falamos.

Minemosine falou com Apolo o qual mandou um e-mail para Poseidom que elocubrou em sua profundidade a vida de Hera e concluiu certas coisas. Pedindo segredo, claro, falou com seu filho Polifemo o cíclope. Ate, num grande tete a tete com Hermes expressou sua inquietação e este um deus essencialmente móvel, passou “o caso” para alguns deuses e ninfas de outros lugares. Nêmises ficou chateada e segredou para Têmis… Eros adorou a história picante que já criava perninhas e a espalhou, pedindo segredo é óbvio… Um dia, muito tempo depois, Hera sentiu em torno de si uma atmosfera densa e falando com Ártemis ouviu um resumo de tudo que estava sendo falado… Coisas no mínimo bizarras e mais! Ela, Hera estava mal falada e histórias impressionantes circulavam a seu respeito. Estava na boca do povo; dos deuses, aliás. Fechou o tempo no Olimpo. Hera falou com Zeus que começou a investigar donde vinha tudo aquilo… e o tudo levou a Ate que foi descoberta como uma exímia escultora de sombras que acompanhavam alguém criando névoas que com o tempo e suposições  engendravam o horror.

Ate criou discórdias e brigas homéricas entre os deuses.

Zeus enfureceu-se pegou Ate pelos cabelos, rodopiou a deusa no ar e a atirou à Terra!

Sacanagem.

Ate caiu aqui em ódio puro… Fez observações terríveis sobre a conduta sexual da mãe do Zeus. Depois, aos poucos, foi se acalmando e olhou para onde estava e ia morar.

Viu:

. ..“pessoas desfiguradas de tanta necessidade e fome, perambulando pela terra ressequida em sombrios e devastados desertos. Nos campos de mato rasteiro colhiam ervas, e a raiz de giesta era sua comida. Da companhia dos amigos tinham sido expulsos a gritos, como se fossem ladrões. Foram forçados a morar nos leitos secos dos rios, entre as rochas e nos buracos da terra. Rugiam entre os arbustos e se encolhiam sob a vegetação. Prole desprezível e sem nome foram expulsos da terra”.   Livro de Jó.

A deusa assustou-se. Acostumada no bem bom do Olimpo nunca imaginou uma maldição assim. Descobriu também gente vivendo muito bem! Descobriu o dinheiro e todos os modos com que ele pintava nos bolsos e bancos e dava poder.

A diferença entre os ricos e pobres era imensa.

Ate começou a gostar do quadro.

Principiou a sua “arte” de espalhar boatos, histórias, suspeitas, insinuações. Tudo para o bem.

Riu, ficou feliz.

Extasiada!

Ela teve um chilique de alegria!

O ser humano era perfeito para sua influência! O Homo sapiens fora treinado pelos seus líderes e governos para não pensar e delegar aos outros a raciocinarem e decidirem por ele. Os religiosos eram os mais fáceis. Vivendo em clubes fechados, topavam qualquer coisa: brigas entre si, politicagens, partidarismo, controle.  

Ate se forrou!

Guerras, sofrimentos, laços quebrados, enganos e os maus desígnios cresceram.  

Zeus soube, e mandou para a terra suas filhas, as Preces. Elas podem parar a deusa do engano, mas, são coxas e não conseguem alcançar Ate que segue veloz pelo mundo tirando a paz dos pobres mortais. Nós! Na senda da deusa o único que as Preces podem fazer é procurar consolar os humanos imersos em arrependimento e revolta.

Em férias na Praia Mole na Ilha de Santa Catarina Ate lembrou-se que era o aniversário do dia da sua saída do Olimpo. Gente, como o tempo voa… 5.728 anos. A deusa passou um pouco mais de bronzeador na barriguinha escultural, riu de uma idéia que assomou em sua mente. Depois correu a uma Lan House e mandou um e-mail a Zeus!

“Oi Zeus!

Como vai o seu trabalhinho em liderar a galera divina por aí?

Estou numa praia maravilhosa pegando um bronze. Hoje é o aniversário da minha saída do Olimpo. Lembrei-me de agradecê-lo pela idéia em atirar-me aqui! Ah, e no seu estilo: truculência e falta de criatividade. Você é uma lástima, mas acertou. Estou amando tudo. Que massa isso aqui, cara!

Vou lhe dar um presente: realidade.

Consideramos-nos deuses. Mentira. Os deuses estão aqui! Pobres ou ricos, enganados (e bilhões o são) ou enganadores os deuses moram aqui na terra. Aqui e agora. O estarem mortais os deixa duros como aço. Tem que ver as armas fantásticas que criaram! A fissão do átomo produziu explosivos que desintegram cidades e regiões inteiras. Hummm que delícia… E a radioatividade que fica! Uma loucura. Nada mais cresce… Demais! Seus raiozinhos, querido, são piqueniques de freira perto de um artefato nuclear dos nossos menores. Também armas químicas lindamente fatais. Que coisa de louco! Mas os demais são os vírus e bactérias criadas em laboratório que matam milhões de pessoas por doenças com nomes difíceis e científicos!

Pouquíssimos cérebros mandam no mundo e o controlam pela mídia com informações pré-escolhidas e força se necessário. Já mandamos uma sonda a Marte! Diga a ele, tá. Inventamos o plástico e o supermercado. Somos os melhores.

É, os deuses estão aqui! Temos uma linda religião de plástico que mantém o homem atolado em culpas e atrelado em alguma forma de culto que ele acredita poder expiá-las. Legal, dá poder e grana.

Aqui aprendi ser uma deusa!

Gatinho divino, aqui na terra sou – como os humanos dizem – uma eminência parda, ou seja, eu mando nos deuses!

O Olimpo é mito! É divertido estudar vocês encarapitados aí. Tem gente que faz isso profissionalmente e até conheço um escritorzinho que escreve sobre mitos numa boa revista no Rio.  Hoje vejo que nós somos perigosamente divertidos e inócuos. Séculos de masturbação teológica transformaram-nos em arremedos de deuses risonhos e alienados.

As grandes e impressionantes perguntas sobre existir estão na terra, na vida frente à morte! Um ato feito aqui pode sempre ser o último. Por isso os atos são fundamentais. Um deus tem que ser mortal para ser deus, para aprender a importância dos atos e da vida.

De todos os ridículos aí do Olimpo – só Ártemis escapa! Adoro-a – você é o top de linha do bobo alegre! Aquela sua mania de engravidar as filhas dos homens fantasiado de maridos ausentes ou de uma névoa dourada é o fim da picada! Só que sua influência é forte por aqui meu caro. Sexo é a grande ênfase. Você pode puxar o tapete de alguém, enganar nos negócios, falar mal e propagar calúnias; mas, se fizer o mínimo na área do sexo tá ferrado. Você criou o puritanismo sacana. Você entortou a cabeça dos humanos com suas imagens eróticas e necessidade de provar que é um deus macho. Vê se te manca, bicho. Qualé! Babaquice tem que ter limites sabia?

Um abraço de uma deusa real!

Ate”.

Zeus nunca respondeu. Depois das férias Ate foi para a Índia. Ela já a conhecia há séculos; fez alguma coisa por lá, mas decidiu na época, investir no Brasil. Um campo fértil. Agora na Índia ela vai se contextualizar, entender a cultura, valores e o modus vivendi do povo para continuar a trabalhar com eficácia.

Ate está fora do Brasil! Não se anime. Ficaram bons discípulos feitos pela deusa!

A maledicência continua.

Mario Nitsche
Curitiba, 23.09.09

O presente trabalho está inscrito na Fundação da Biblioteca Nacional para efeito de Direitos Autorais.

 

 

 

Largo da Ordem - By Mario Nitsche

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